Pedaços Soltos 1.0

 





O julgamento terminara. Condenada. Sentenciada a desaparecer.
Quando? No próximo por do sol.
Em doze horas, não existiria mais. Ali, de onde estava, podia ver o Vale dos Mortos. Um lugar sagrado para Ashley, afinal, ainda era ela a única que poderia entrar ali sem medo de enlouquecer. Porque ela era Sua Senhora.
A porta abriu-se, deixando entrever a pessoa que ela menos queria ver: Seu digníssimo marido, ainda vestido com as roupas do casamento, assim como ela. Ashley lançou-lhe seu melhor olhar ‘não chegue perto se não quiser morrer’, mas Alain não se intimidou com aqueles olhos nublados, foi chegando cada vez mais perto, decifrando cada sentimento que os olhos dela exprimiam. Nenhum o fez parar. Até notar que a nuance mudara sutilmente do cinza para o amarelo-gato, e a expressão dela era de nojo. Asco puro.
- Ash...
O olhar dela se apertou. A mensagem era clara: fora!
E não era um fora qualquer. Era um fora total: fora do quarto, do castelo, da vida dela.
- Não tão fácil, garotinha. Não sairei daqui sem um bom motivo. – A tática dele era simples: ela teria de falar com ele, mesmo que para brigar.
  Só que ela estava um passo a frente dele. Cabeça dura como era, Ashley já havia se preparado para essa tentativa fajuta de conversa. Olhando-o com aqueles olhos, ela bombardeou a mente de Alain com as cenas que vira quando fora procurá-lo. E as colocou lá com toda a força possível. Era como se perfurasse a mente dele com facas cegas.
Ele caiu de joelhos, mas não tentou impedir. De qualquer maneira, não havia como, pois uma vez que ele permitira o acesso dela em sua mente, não havia como voltar atrás.
E ela não foi piedosa. Cada ponta de ódio que ela sentiu voltava-se para ele com violência. Os gritos dele, com toda certeza, poderiam ser ouvidos por todo o castelo.
Na mente de Alain, ele via o momento em que Ashley decidira procurá-lo...

Saindo do salão, meio andando, meio correndo com um sorriso nos lábios, o olhar de quem ia fazer uma travessura. Olhava ansiosamente para os lados, procurando alguém, procurando ele.
O vestido que usara na cerimônia pública havia sido encurtado, a saia negra agora mal chegava ao meio de suas coxas, abrindo-se por cima das inúmeras anáguas. As botas altíssimas haviam sido trocadas por sapatilhas de bailarina negras, e, de suas espadas, nem sinal. A tiara prateada estava em uma das mãos, mas logo desapareceu também. Era como se ela quisesse que todos os detalhes que lembrassem à rainha não estivessem ali.
E então, quando começava a preocupar-se, viu movimentos nos arbusto, logo após a entrada do labirinto. O sorriso dela agora era algo largo, algo raro de se ver.
E então ela chegou onde ele estava. E, como um espelho quebrando, seu sorriso desfez-se, e as lágrimas alcançaram seus olhos agora azuis, devido à tristeza. De azul, foram a vermelho, até as chamas que queimavam neles pudesse quase ser sentida.
Alain, encostado numa das sebes, segurando Sasha pela cintura, olhos fechados e a boca ocupada em beijar a loira.


MUSICA: COLLIDE

A água que saia das fontes evaporaram, as árvores tornaram-se mais secas, como que o outono estivesse se aproximando. E então, tão calada como chegara ali, Ashley correra na direção contrária, a que levava ao Vale dos Mortos, ou Vale da Morte, dependendo de quem chamava.
E lá ela deixou que as lagrimas finalmente caíssem, sentada nas raízes de árvores milenares, com aquelas sombras indo e vindo, sem, entretanto, fazer mal a ela. Claro. Era a Senhora deles.

Mas alguma coisa mudou nas lembranças de Ash, e Alain sentiu que ela não queria que ele soubesse.  Por esse único motivo, ele forçou sua entrada.
Não conseguiu muita coisa, é claro. Assim como ela não conseguiria com a dele.
Mas conseguiu o bastante.

Dois corpos, nus, entrelaçados em uma cama.

- Quem era? – Ele pensou que valia a pena forçar a barra. Se não fosse uma informação valiosa, a pequena megera não o teria tirado de lá tão rápido.
- Ninguém. – Ela quase cuspiu a palavra.
- Tinha mais gente do que ‘ninguém’ ali.
- Não era nada que você precise saber. Para falar a verdade, você não precisa saber de nada, mesmo. Em menos de doze horas poderá curtir sua liberdade novamente.
- O que você quer dizer com isso? – Ele levantou a sobrancelha. – Se você não lembra, o divórcio aqui só acontece com um advogado: A Morte.
- Eu sei quais as leis que regem meu reino, muito obrigada. – Ela resmungou. – Sei até melhor do que você.
- A claro, a Madame-sabe-tudo é sempre a mais informada. Então me diga, como vai me matar? Porque eu não pretendo me deixar morrer assim tão fácil, sabe?
- E quem perderia seu tempo tentando matar um traste inútil que nem você? – A rainha desdenhou, mas a voz dela tremia.
Ele demorou demais para entender o que havia ouvido, e, quando entendeu, Ashley havia deixado o quarto pela janela.
Seria ela a executada. E ele nem mesmo sabia.