Capitulo 01 - A Little Piece of Heaven



Hoje tinha tudo para ser o melhor dia do ano, mas não foi, graças a um plano mirabolante do destino, é obvio.

Para começo de historia, é o primeiro dia de aula na faculdade após quase dois meses sem rever meus amigos. E todos nós sabemos que na primeira semana de aula, em qualquer instituição de ensino, é pura festa. Imagine quando a tal instituição é uma faculdade. Então lá estava eu, passeando com meu Converse vermelho de cano alto, farda preta do curso e jeans skinny, me sentindo a ultima Coca-Cola gelada do Saara, vendo os novatos se entulharem para a palestra de boas vindas que, com certeza, ia começar com horas de atraso, e esperando o tempo passar, pois eu estava bastante adiantada (como sempre), quando uma moto prata surge do nada e quase me mata.

Minha primeira reação foi ter um acesso de raiva. Estávamos em uma via de pedestres, o que diabos ele estava pensando colocando aquela moto monstruosa pra cima de mim?

Só que nem isso deu tempo. Em menos de dois segundos ele olhou pra mim, e eu vi no brilho de seus olhos o reconhecimento, junto com uma surpresa, ao mesmo tempo em que ele dava meia volta e eu ficava com aquela sensação de que já o conheço.

Passei quase dez minutos inteiros tentando lembrar onde eu o havia visto. A única hipótese que me ocorria era que ele estudava comigo, ou ao menos na faculdade, mas como eu o reconheceria de novo, se seu rosto estava tampado com aquele capacete? Talvez algum dos meus colegas de classe... Ele estava de blusa preta, mas não tinha certeza de que era a mesma minha farda.

Tal conjectura se mostrou correta quando, às sete da noite, na última carteira da última fila ao lado da porta, eu observei todos os meus amigos reunidos. Na realidade, faltavam dois, mas era de conhecimento público que eles haviam desistido; e havia três novatos: uma moça e dois rapazes e, quando olhei para ela, meu choque foi tremendo. Se não fossem os olhos claros, a boca mais fina, pequenos detalhes do rosto e estatura mais elevada, ela seria eu de cabelos negros e sem maquiagem. Pelo menos não o mesmo tanto de maquiagem que eu costumava usar. Ela estava na carteira do lado oposto a minha e olhava fixamente para frente, concentrada na conversa com o novato que a precedia na fila.

O meu lugar era tão característico que nenhum dos meus amigos ocupava-o. Sempre sentei perto da saída, pois tenho um pendor natural para matar aula. Minha natureza inquieta nem pedia movimento, que eu respondia com uma longa caminhada solitária pelo campus, acompanhada dos meus fones de ouvido no volume mais alto. A luz da lua sempre me encantou; para ser mais exata, me considero uma pessoa noturna. Não que eu vire noites em baladas, mas costumo passá-las acordada, lendo, escrevendo, estudando ou ouvindo música. Às vezes, leio, escrevo e ouço música ao mesmo tempo. E eu totalmente detesto o sol. Odeio até. Quando tenho que sair de casa durante o dia, sempre é com quilos de protetor solar, que eu também odeio; numa hora bem cedo ou tarde o bastante para os raios de sol estarem bem fraquinhos e causarem o mínimo estrago, com óculos de sol e boné, quase um disfarce.  Efeito ou não, minha pele é branca como leite, logo, não posso maneirar mesmo.

Bem, onde eu estava mesmo? Ah, no último lugar da sala, observando meus colegas à procura do quase assassino e... Bem, de uma outra pessoa especial também (Ok, me processe por ser uma garota normal!). Dois meses desde ultima vez que o vi e meu corpo ainda respondia do mesmo jeito: Gritando com todos os hormônios disponíveis.

Repudiei cada dia dessas férias que me fizeram interromper o que começamos mais ou menos uns três meses e meio atrás. Aparentemente não atrapalharam tanto assim, porque aquele loiro, alto e maravilhoso deus grego de olhos claros veio sentar ao meu lado assim que me viu – um hábito adquirido antes das férias.

-E então? – Ele perguntou.

-Então o que?

-Por que não me avisou da sua chegada? – Ele levantou uma sobrancelha. – Ou decidiu me trocar por um daqueles caras do show?

Entre sorrisos e falsa despreocupação, notei que ele estava sério. E eu sem entender nada.

-Acho que estou sobrando nessa conversa. Que caras e que show eu fui?

-Sexta –feira. – Ele falou – Você me disse que queria ir lembra? O show daquelas meninas fantasiadas. Você sabe qual é.

Um brilho de compreensão surgiu por um minuto na minha mente, mas só por um minuto mesmo. Lembrava-me de ter anunciado aos quatro ventos que queria ir a esse show, mas também lembrava que não pudera ir porque ainda estava no aras dos meus pais, como fiz o favor de lembrar a Tarso no mesmo instante. Ele imediatamente corou.

-De fato, você me ligou do telefone de lá naquela tarde, não é fisicamente possível que você tenha chegado ate a noite. – Meu ‘pretendente’ se rendeu. Ou quase. – Mas havia alguém lá muito parecida com você. Disso eu tenho certeza.

No mesmo instante um sinal vermelho instalou-se em meu cérebro, sem que eu nem mesmo soubesse o porquê. Em todos os locais do mundo existiam sósias sem nenhum parentesco. Às vezes eles se encontravam, às vezes não. Fim da historia. Mesmo assim continuei apreensiva.  Lembrava-me também que na noite do show sonhara estar lá, tamanha era minha vontade.

Mas antes de contar a todos os meus sonhos, devo avisar que eles nunca são normais ou decentes. Às vezes, são a mais pura besteira da face da Terra, às vezes são simplesmente irreais.

O caso é: eu sonhara que estava no show, mas no sonho, Tarso era um simples figurante. Ele aparecia ao longe e eu não sentia nenhum ressentimento em magoá-lo. Para começo de historia, lembro-me de estar fantástica com o tipo de roupa que muita gente desaprova: um corselet de couro preto, saia curta preta, pregueada, meia calça rasgada em vários pontos e minhas botas pretas de salto agulha que batiam abaixo do meu joelho. Os cachos do meu cabelo castanho estavam ainda mais definidos, como se eu tivesse usado babyliss neles; minha franja mais curta, caindo levemente dentro dos meus olhos que assustavam muita gente: um era cor de mel, o outro cinza chumbo, como se olhasse para prata. O fato de ter olhos bicoloridos já seria o bastante para que muita gente me olhasse estranho. O fato de eles terem nuance verdes e azuis só os tornava ainda mais bizarros.

Pois bem, voltado ao sonho onde eu estava de arrasar... Eu me lembro de olhar para a banda composta por cinco garotas e sorrir, como se uma piada interna viesse à tona. Estava no ‘fundão’ do show. Não que eu precisasse, dava pra chegar perto do palco numa boa. O pessoal da cidade tinha um nível de educação altíssimo para esse tipo de evento. Estava encostada em uma parede, observando a guitarrista solo fazer os acordes enquanto eu mesma os repetia numa guitarra imaginaria. Daí dá pra começar a entender a bizarrice da coisa: eu nem sei segurar uma guitarra, quanto mais fazer um solo nela. Levantei a cabeça e olhei pra um de meus companheiros. Ele meio que ria com um só lado da boca, como se me desafiasse.

Na verdade, eu sabia que ele estava me desafiando...

-Alexyssssssssssss. – Tarso me trazia de volta a realidade. – Vai ou não falar alguma coisa?
Revirei os olhos em meu intimo. Ótimo, eu tenho uma sósia. Como se eu não tivesse visto a senhorita cópia naquela sala de aula naquela mesma noite. Apontei-a para Tarso:
-Aquela poderia ser quem você viu no dia do show?

Ele a encarou por alguns minutos. Para falar a verdade, foram apenas segundo. Mas meninos são tão lerdos que fazem o tempo parecer uma eternidade...

-De longe ela engana, mas a diferença é demais. E eu tenho certeza de quem eu vi era idêntica a você.

Ele era cego. Com certeza. Pra minha gêmea, faltava pouco. Considerando algumas gêmeas que eu conhecia, não faltava nada. Mas tudo bem, eu não queria discutir com ele agora. Até porque o professor vinha entrando pela porta principal.

Se você é uma pessoa normal, deve saber que o primeiro dia de aula nunca tem realmente uma aula. A não ser que você esteja em um cursinho preparatório, mas como esses não é o meu caso, deduza que a hora e meia seguinte antes do intervalo seria de pura enrolada. Mas eu precisava da minha presença em sala para passar, então me mantive quieta. Ainda não conhecia aquele professor, e, até conhecer todos os hábitos dele, nada de matar aula. O que não significa que eu prestei atenção em alguma coisa que ele falou. Muito pelo contrario. Primeiras aulas são ótimas para deixar a mente descansar do agito das férias. Pelo menos esse seria meu roteiro se eu não tivesse que pensar sobre o sonho e a coincidência dos fatos.